21/04/2008

As escadas rolantes do Capitólio

In Público (20/4/2008)
João Bénard da Costa

«Foi aí pelos finais dos aos 80. Luís de Pina ainda era vivo. Ele é que me desafiou a descermos dois quarteirões da Avenida para espreitar o Capitólio. Este ainda estava activo, embora especializado em filmes pornográficos. Quem nos visse (director e subdirector da Cinemateca, que à época éramos) entrar pelo velho edifício de Cristino, já a desconjuntar-se, pensaria que aos programas da Barata Salgueiro preferíamos uns pornos indigentes, desses de "abrir porta - fechar porta", para não falar de outras aberturas e de outros fechamentos.
Mas não eram coxas quentes o que buscávamos. Entráramos ali para estudar um pouco aquele espaço (o que restava dos foyers e dos camarotes) e, metendo conversa com um velho porteiro, conseguimos mesmo que ele nos deixasse descer à cave, que abriu e iluminou para nós. Era um espaço imenso e vazio, à excepção de uns trastes que alguém deitara para ali, com preguiça de os transportar até ao caixote de lixo mais próximo.
Foi nessa cave que a ideia que trazíamos começou a tomar corpo. Aquele vasto espaço já a cheirar a ruína, mas ainda com vagos vestígios do esplendor de outras eras, devidamente restaurado, podia prestar-se magnificamente à ideia de um Museu do Cinema, de que já se falava nos corredores da Cinemateca. Das traseiras do prédio da Barata Salgueiro, que dão para a Rua do Salitre, até ao Parque Mayer era um pulo e a Cinemateca podia assim ter um prolongamento quase natural e convenientemente urbano.

Poucos anos antes, nuestros hermanos da Filmoteca Española, com quem estreitávamos relações por esses tempos, tinham recuperado um belo cinema dos anos 20, na Calle Santa Isabel, em pleno centro de Madrid: o Doré, que fechara portas, depois de ter sido cinema de primeira e cinema de segunda, e ia ser demolido. Foram a tempo. Fizeram um restauro impecável e transformaram-no numa das mais belas salas de cinemateca do mundo. Confesso que fiquei roído de inveja a primeira vez que lá fui e comecei a pensar no que ainda se podia fazer (já lá vão 20 anos) de salas equivalentes, da mesma época ou um bocadinho posteriores, ainda existentes em Lisboa.
Portugal sempre deitou o passado borda fora, talvez a mais visível herança que os navegantes nos deixaram. Inventaram-se e inventam-se muitas desculpas: o terramoto de 1755, as invasões francesas, o espólio que o futuro D. João VI levou para o Brasil, num feito que está na moda apresentar como profético e até visionário e que continuo a pensar ter tido mais trementes motivações. Todos têm as costas largas, como as têm as pilhagens posteriores aos conventos e igrejas, os anéis que se venderam para salvar os dedos, etc., etc. Conservar não está no nosso feitio, mesmo nos mais conservadores. Pense-se, por exemplo, nos cinemas de Lisboa.
Quando eu andava de calções, havia o São Luiz (que já tinha sido Theatro D. Amélia e Teatro República, até se fixar no título do visconde que era proprietário dele), havia o Tivoli, que nunca tinha sido nada antes, pois nascera para cinema em 1925; havia o Éden de Cassiano, grande novidade dos anos 30; havia o Politeama (que antes dos primeiros acordos, sempre malfadados, se chamava Polytheama) e também trocara vocação teatral por vocação cinematográfica; havia o Ginásio, ao pé do Trindade, outro convertido ao cinema e que, nos anos de que me ocupo, cheirava a nazi que tresandava; havia o Condes, o primeiro "grande cinema moderno" de Lisboa, inaugurado em 1917. Por ordem descendente eram as salas do tout Lisbonne quando o tout Lisbonne ia ao cinema. Depois havia o cinema de reprises, ou seja os que repunham os filmes das salas nobres para gente mais pobre, normalmente em programa duplo, quase sempre cinemas de bairro. Havia ainda algumas salas de estreia menos conceituadas como o Odéon, o Palácio (explorados pelo mesmo proprietário, tinham quase sempre a mesma programação), o Olympia, onde ia o maralhal ver as séries do Capitão Tormenta ou os primitivos super-homens, ou, último em data, o Capitólio, ilha cinematográfica entre os teatros do Parque Mayer, inaugurado em 1931.
Conheceu duas plantas (Cristino da Silva) a primeira polivalente, a segunda já em exclusividade cinematográfica. Foi esta que eu conheci e, se as minhas fontes me não falham, assumiu plenamente essa vocação em 1946. Ano, aliás, em que no Capitólio se estreou uma das máximas obras-primas da história do cinema: Man Hunt de Fritz Lang.
Depois, já eu não andava de calções, inauguraram-se as grandes salas com milhares de lugares: o S. Jorge, o Monumental, o Império, em catadupa dos primeiros anos 50. Era o scope, era o VistaVision, eram os 70mm, com apoteose no super-écran do super-Monumental.
Que reste-t"-il de nos amours? O Tivoli, o Éden, o Ginásio, o Condes foi um ar que lhes deu e quem vê fachadas não vê interiores desabridos. Resta o Império, mas para as missas da IURD e não mais para os cinéfilos. Resta o S. Jorge, partido às fatias, e que só se salvou devido à bendita teimosia de João Soares; resta o S. Luís (onde vai o z!) mas cinema não é com ele e teatro só quando o rei faz anos; restam duas ruínas: o Odéon e o Capitólio, há muito encerradas, a apodrecerem aos poucos ou aos muitos.
O Capitólio do "meu tempo" tinha duas novidades decorativas que deram brado: uma escada rolante, a primeira escada rolante que existiu em Portugal, e que, embora só rolasse a altura de um lance de escadas, era o gáudio dos indezes e o terror das sogras de meia-idade, que, ao chegarem lá acima ou cá abaixo, caíam nos braços da família, bradando em vernáculo "we made it"; uma esplanada no terraço para as noites de Verão, onde os monstros da lagoa negra evoluíam com o céu como limite. Havia quem levasse cobertores ou para não ter frio ou para conhecer melhores calores.
Depois, o terraço fechou, a escada levou sumiço, com o 25 de Abril vieram as gargantas fundas, até que, nos anos 90, aquilo fechou de vez.
Foi nessa altura (segunda metade deles) que a Cinemateca esteve mais perto de se abeirar do Capitólio. Em 1997 (era ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho, era presidente da câmara João Soares) a Cinemateca, termo de que aliás o inventor dele (Henri Langlois) não gostava, assumiu, até na letra da lei, a sua vocação de Museu do Cinema, como ainda hoje se continua a chamar. Como museus do cinema, Langlois sempre as concebera e quem ainda conheceu o espaço mágico que ele construiu e programou no Palais Chaillot, em Paris, (hoje, infelizmente, ido com o vento) percebe donde ele queria partir e onde ele queria chegar. Um espaço expositivo que traçasse a história da grande arte das luzes e das sombras, desde o século XVI (ou antes) até hoje e ao que depois de hoje vier. E todos os caminhos iam dar a Roma, sendo Roma a grande sala de cinema onde se expõem os filmes.
Aprovada a concepção teórica, em Portugal 97 como já disse, faltava cumprir a finalidade última dela: ou seja, transformar o Museu virtual que a Cinemateca hoje já é (após a remodelação dos seus edifícios em 2003 e a conversão do antigo Salão Foz na Cinemateca Júnior, faz hoje precisamente um ano) num Museu do Cinema "real", se é que a realidade se casa com sombras e luzes, como há quem diga que sim e como há quem diga que não.
E assim ressurgiu, nas tais boas intenções de que o inferno está cheio, a ideia de estabelecer um percurso coerente, geminando a moradia da Barata Salgueiro ao Capitólio. Manuel Maria Carrilho chegou a anunciar publicamente que assim ia acontecer, em 1999, quando o destino do Parque Mayer passou para as bocas do mundo.
Depois veio Pedro Santana Lopes (para a Câmara) e, no auge da polémica, chegou a bradar um dia, num debate televisivo, que o seu vasto projecto culminava com a transformação do Capitólio em Museu de Cinema, sob a minha orientação, calando com esse argumento ad hominem um atónito Eduardo Prado Coelho.
Ainda me convidou para um jantar com Frank Gehry (era o tempo dele) mas sinceramente não fiquei com a impressão que a ideia do museu fosse a que mais entusiasmava o arquitecto, que obviamente não morria de amores pelo que restava do Capitólio e se propunha até - se bem o entendi -demoli-lo e construir-lhe um replicante com outra orientação.
Depois, tudo teve o destino que se sabe: Santana Lopes, o projecto Gehry, a própria recuperação do Parque Mayer.
Leio agora - e foi essa leitura que me despertou para um memorialismo menos desinteressado do que é costume - que está constituído um júri, ou coisa que o valha, presidido por Nuno Teotónio Pereira, para apreciar novas ideias e novas finalidades para um Capitólio a que se quer voltar a dar a traça primitiva de Cristino (Deus os ouça, que eu só acredito quando vir).
Cinema? Com o que por aí vai de aflições, ("oh meu amor, antes fosses ceguinha!"), não auguro um futuro muito brilhante. Basta olhar, quase ao lado, para a visão melancólica do cabisbaixo S. Jorge, a abrir em dias pares e a fechar em dias ímpares, ao sabor de eventos que por lá ficam a boiar.
Teatro? Se o que se diz é que nem os teatros vizinhos vão subsistir, de tal modo morreu o género que lhes dava vida, também não me parece sorte desejável. Além do que, seria uma curiosa ironia da história, ver o edifício que no Parque Mayer foi cinema insular, transformar-se no teatro insular dele. Museu do Teatro? Ao que sei, o que existe está bem e recomenda-se e também seria historicamente contra-natura naquele espaço povoado por tantos fantasmas cinéfilos.
Porque não - por uma vez - considerar o que um museu do cinema (pense-se, por exemplo, no que o museu de Turim trouxe à cidade no espaço recuperado da Mole Antonelliana) podia significar num lugar com tal história e tão confinado à Cinemateca.
Sou suspeito? Claríssimo, mas não sou suspeito do costume. Do que se trata seria mesmo de uma enorme inovação nos nossos costumes, quer na recuperação da memória quer na projecção dela para o futuro. As escadas já rolaram uma vez, quando ainda nenhumas outras rolavam em Lisboa. Porque não fazê-las rolar de novo, no fecho de uma abóbada?

PS - Para a semana que vem - 27 de Abril - vou faltar outra vez. Uma semana noutra cidade. Depois, conto. Eu conto sempre.»

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