13/07/2007

Lisboa vive com um pé no século XIX e outro no século XXI

In Público (13/7/2007)
Adelino Gomes

«Jürgen Bock
Nasceu em Wuppertal, Alemanha (então Ocidental), em 1962

Solteiro. Mestrado em Artes Visuais. Em Portugal há 14 anos. Curador freelance e director da Escola de Artes Visuais Maumaus em Lisboa
Encontro um resmunguarda que me intima a parar. Seria por suspeita?
Seria por rotina? Não. Foi para conversar...
Alexandre O"Neill
Uma Lisboa Remanchada*

Depois de chegar a Lisboa, em 1992, Jürgen Bock ficou impressionado com a dinâmica que então se iniciou. O muro de Berlim caíra há pouco e testemunhava na capital portuguesa uma velocidade de mudança maior do que na Alemanha de Leste, em processo de unificação. Situação tanto mais assinalável quanto Lisboa surgia, para quem chegava nesse tempo, como "uma cidade pouco europeia". Os seus olhos viram, porém, nela, uma enorme riqueza histórica que a tornava "quase um museu urbanístico", pela justaposição dos bairros diferentes, que vão da Baixa às Avenidas Novas, do Campo dos Mártires da Pátria (onde se situa a escola Maumaus, que dirige) ao último bairro construído, na Expo "98.
Lisboa é uma "zona de contacto", no sentido que a artista norte--americana Renée Green, que conhece Lisboa muito bem, lhe dá. Nela existe um grande conjunto de pessoas de origens variadas, o que contribui para eliminar a noção de "ser de fora", que se encontra noutros países.
Convidado para conferências na Maumaus (na altura essencialmente dedicada à fotografia clássica, hoje aberta a outras técnicas, como o vídeo, e proporcionando estudos avançados no campo das Artes Visuais bem como residências artísticas), ficou seis meses. Que foram sendo prolongados por novos convites anuais. Acabou por trocar Colónia, onde estudou e vivia, pela capital portuguesa, onde instalou residência oficial em 2002.
Ao longo desta década e meia, Portugal sofreu transformações e mudanças, umas para melhor, outras para pior. Em consequência, em Lisboa vive-se "com um pé no século XIX e o outro no século XXI". "Coisas que melhoraram: os notários, a possibilidade de fazer declarações de impostos na Internet, as operações pelo Multibanco, impossíveis de fazer na Alemanha, a Via Verde, que é uma tecnologia portuguesa, já a ser exportada, por exemplo, para os EUA e para a Coreia do Sul".
Ao contrário da generalidade das vozes críticas, Jürgen não pensa que os acessos a Lisboa sejam assim tão maus. Assinala até a "excelente" qualidade dos equipamentos oferecida pelos transportes públicos, que não lhes dão, porém, a utilização adequada nas respectivas redes.
Aponta, a propósito, dois exemplos positivos e um negativo. "Os estacionamentos subterrâneos no Largo Camões e no Campo dos Mártires da Pátria são exemplos, quase luxuosos (custa muito dinheiro fazer um estacionamento debaixo de um jardim ou debaixo de uma praça, como foram os dois casos), de uma integração sensível de um novo equipamento no casco velho da cidade".
O túnel do Marquês fornece-lhe o exemplo contrário. "Fiquei chocado com o acabamento incrivelmente pouco sensível. O rosto do túnel, que é a parte que nós, peões, vemos, é de uma aridez de betão medonha, não tem nem uma árvore".
Aprender com Madrid
Entre o interesse dos automobilistas, que não contesta, e o dos peões, defende que se procure uma solução de compromisso urbanístico. "A não ser que Lisboa queira acabar, um dia, como aquelas cidades alemãs onde há auto-estradas no centro da cidade. Será um grande conforto para os automobilistas, mas não reflecte as tendências actuais de planeamento das cidades".
Lisboa não deve perder qualidades que ainda tem e outras cidades europeias já perderam, sustenta. Para isso, pode aprender muito, por exemplo, com os recentes desenvolvimentos de Madrid, "que tornaram esta cidade menos atractiva, nos últimos 10 anos - até os espanhóis dizem".
A questão é delicada e susceptível de mal-entendidos, que podem levar a extremos, como aconteceu, com Lisbon Story, de Wim Wenders. "O filme celebrava a cidade de uma maneira um pouco kitsch, deixando-a no passado e recusando o desenvolvimento".
"Para qualquer mudança paga--se sempre um preço". É preciso por isso avaliá-la com cuidado, previne, dando o exemplo de certas restrições impostas, de forma quase cega, a produtos tradicionais, pela União Europeia, que veio, mais tarde, a recuar, por respeito a valores culturais.
À equipa saída das eleições de domingo (em que participará, votando, pois assume-se como residente activo da cidade) pede a modernização dos métodos de trabalho camarários, "que só a liderança, e não o funcionário público, pode fazer".
Na câmara há "grandes capacidades, não aproveitadas". Mas é preciso que a máquina se concentre naqueles projectos que melhor pode trabalhar, deixando os outros para colaborações com entidades profissionais. "Gerir bem e ter uma boa programação, mesmo que isso signifique menos infra-estruturas", aconselha, dando como exemplo de uma boa infra-
-estrutura o Teatro de S. Luiz.
Baixa só para turistas, não
Jürgen Bock deixa um recado: "O centro de Lisboa não deve ser entregue aos turistas. Assim, corre o risco de se tornar numa Las Vegas. Deve prevalecer nela uma boa mistura de comércio, população original (seja lá o que isso quer dizer), trabalho e, também, turistas. Agora, introduzir hotéis de charme, casinos, e entregando tudo ao turista, significará perder muita qualidade. De que até os turistas gostam..." Foi assim, aliás, que entendeu a aposta na vizinhança entre estes vectores - trabalhar, viver, consumir - do Plano de Requalificação da Baixa.
Lisboa deve internacionalizar--se, não como uma cidade eminentemente turística, mas como uma cidade de "criação de circunstância de pensamento", atraindo gente de todos os níveis. "Lisboa é uma cidade-nicho. Quando convido professores de Los Angeles, da Alemanha, artistas de Paris, ninguém recusa. Já conhecem Paris, Berlim, Londres, estão interessados em visitar Lisboa e trabalhar aqui".
Aprendeu na Alemanha que "um sim é um sim; um não é um não". Em Portugal verificou que um sim pode tornar-se um não, mas um não também pode tornar-se um sim. "As coisas são mais subtis em Portugal e esta forma de interagir agrada-me mais", diz.
"Quando o avião chega, gosto sempre de voltar", conta. Recusa, no entanto, qualquer tendência de mitificação de Lisboa. "Não é melhor nem pior viver em Portugal ou na Alemanha. É simplesmente diferente. Considero--me privilegiado por poder viver entre os dois territórios. Nunca vou ser português, mesmo que me naturalize, pois a minha socialização foi feita na Alemanha. Mas hoje, quando vou à Alemanha, observo o que ali se passa com algum humor, conhecendo a capacidade de improvisação portuguesa que resolve coisas impossíveis de resolver lá."
* epígrafe escolhida pelo retratado
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