18/12/2006

Os automobilistas vão crucificar-me

In Público (17/12/2006)
Por Ana Henriques (textos)

"Defensora dos direitos dos peões, a vereadora da Mobilidade de Lisboa, Marina Ferreira, de 47 anos, diz que vai mudar o sistema de gestão dos semáforos de modo a privilegiar quem anda a pé - ainda que isso lhe custe o ódio dos automobilistas perante os engarrafamentos que poderão surgir. O controle da velocidade por radares é outra medida para 2007 que pode transformar Lisboa numa cidade mais segura.

Gosta de ver O Sexo e a Cidade e lamenta que os lisboetas andem tão pouco a pé. Há pouco mais de um ano responsável por um dos problemas mais complicados da cidade, o do trânsito, a antiga presidente da comissão instaladora da Autoridade Metropolitana dos Transportes e ex-directora de campanha de Cavaco Silva para o distrito de Lisboa tem por hábito andar pelas ruas da cidade depois da meia-noite, para ver o que se passa.

PÚBLICO - O trânsito em Lisboa continua caótico. O que é que falhou no seu primeiro ano de mandato?
MARINA FERREIRA - Lancei os instrumentos necessários para começar a agir sobre esse caos. Para isso contribuirá a entrada de mais 50 agentes ao serviço da Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa [EMEL]. A partir de Janeiro iremos agir sobre a indisciplina no estacionamento, uma vez que a EMEL passou a poder autuar os automobilistas indevidamente estacionados fora das zonas tarifadas - em segunda fila e nos passeios, por exemplo. Para este caos contribui também o facto de haver estaleiros de obras por toda a cidade. Com o fim das obras do metro (na linha Alameda-São Sebastião e em Santa Apolónia) e do túnel do Marquês haverá algum alívio. O fecho da CRIL, para o qual o Governo já lançou concurso, será também decisivo.
Para quando serão então as mudanças?
Gostava que no fim do ano que vem já se notassem melhorias a nível do estacionamento. Claro que isto só vai começar a funcionar à medida que as pessoas abandonarem a atitude inaceitável de quererem entrar com o carro dentro do sítio para onde vão. Tudo passa também por uma adequada política de transportes públicos, que infelizmente não é da competência da câmara. Em 2007 faz parte do meu plano de actividades agir sobre o sistema de gestão dos semáforos, fazer o plano dos parques de estacionamento e fazer o plano das zonas residenciais onde a velocidade vai ser limitada a 30 km/hora.
Que bairros serão esses?
Não vou dizer. Quero falar primeiro com os respectivos presidentes de junta.
A Câmara de Lisboa anunciou parques de estacionamento que nunca foram por diante, nomeadamente silos...
São precisos mais parques, mas tem de ser a câmara a fazê-los? Nunca houve grande orçamento na autarquia para isso. E temos uma série de parques concessionados a empresas e a cooperativas de moradores que nunca os construíram. Vou fazer o levantamento disso. Nas zonas históricas devem ser privilegiados os silos, porque nunca se sabe o que vai encontrar debaixo do chão quando se escava.
Então por que é que os silos não avançam?
Estive a resolver outras coisas, como o controle da velocidade e a elaboração do regulamento que dá novos poderes à EMEL.
A verdade é que a verba que a autarquia destina à construção de parques em 2007 sofre uma redução de 54 por cento em relação a este ano...
A câmara não deve construir parques. Deve definir, em conjunto com as juntas de freguesia, onde são precisos, de que tipo devem ser, que tarifas é aceitável praticarem. A partir daí devem ser lançados concursos públicos para a sua construção e exploração.
Devem ser construídos os parques José Lins do Rego, Barão de Quintela e do Príncipe Real, suspensos por causa da contestação popular?
Não quero particularizar. Falta estacionamento na zona do Chiado e estamos neste momento a fazer um levantamento dessas necessidades, casa a casa.
Onde estão os lugares de estacionamento a preços reduzidos prometidos em campanha eleitoral para os estádios de futebol do Benfica e do Sporting e para o Parque das Nações?
Apresentámos há um ano à secretária de Estado dos Transportes uma proposta de passe social que associava a utilização do estacionamento nestes estádios às viagens de metro. Continuamos sem resposta. Estava à espera disto, que pensei que se resolvesse com celeridade, para avançar para o Parque das Nações.
Apresenta-se como uma grande defensora dos direitos dos peões, mas até hoje não se viu grande coisa.
Vou tentar ao longo do próximo ano alterar o paradigma de gestão dos semáforos, dando prioridade em primeiro lugar ao peão, que terá mais tempo de verde para atravessar, em segundo lugar ao transporte público e por fim ao automóvel individual. Os automobilistas vão-me crucificar por causa dos engarrafamentos, mas vai ter de ser. E tudo isto será associado ao controle de velocidade por radares. A Avenida da República, por exemplo, passará, com estas transformações, a ter mais um carácter de avenida, e menos de via de atravessamento.
Com viu a reacção negativa a este tipo de medidas por parte do presidente do Automóvel Clube de Portugal?
Fiquei triste, porque todos nós, automobilistas, somos também peões. Eu também guio.
Tenciona fechar mais bairros ao trânsito?
Para já não. Vou é avaliar o funcionamento do sistema na Bica/Santa Catarina e no Bairro Alto e tentar melhorá-lo. Há carros a mais a entrar nestes bairros.
E o resto do Bairro Alto?
(pausa) Não sei. Se desta avaliação resultar que é necessário logo veremos. Não tenho isso em perspectiva.
Quando vai conseguir domar as cargas e descargas?
A implantação da solução escolhida não é fácil, por ser muito inovadora do ponto de vista tecnológico, e não tem havido a celeridade que gostaríamos. A Brisa diz que a culpa é da EMEL, a EMEL diz que é da Brisa. Seja lá de quem for vamos pôr isto a funcionar. Garantem-me que em 2007 isso irá acontecer.
Como chega todos os dias ao seu gabinete?
Às vezes venho de metro mas geralmente chego de carro. Venho de Alvalade.
Em vez de usar os transportes públicos, como defende que façam os munícipes?
Era muito mais agradável vir a pé. Só que nós na câmara andamos sempre a correr de um lado para o outro, por os serviços estarem dispersos, e saímos daqui tardíssimo. Mas sempre que posso ando a pé e sempre que o transporte público é a melhor opção uso-o. Gosto imenso de andar de transportes públicos. Agora muitas vezes não consigo, como toda a gente.

Receitas das multas ficaram pelos 20 mil euros

A Carris e o Metropolitano são mal geridas?
Não. O Estado é que é mau gestor dos transportes urbanos, que deviam depender da autarquia. Não acho justa a actual situação, em que a maioria dos munícipes e das câmaras do país [à excepção de Lisboa e Porto] pagam os seus transportes públicos, enquanto aqui essas verbas saem do bolso de todos os contribuintes de Portugal.
O aumento dos tarifários não seria uma solução para os buracos financeiros destas empresas?
Não sei. Se as pessoas pagarem muito pelo transporte público são capazes de começar a optar pelo transporte individual. Por outro lado, em Milão puseram o transporte público gratuito e foi um desastre, porque toda a gente passou a usá-lo e a qualidade degradou-se. O que defendo é um preço político, que sirva para condicionar comportamentos. Os novos preços de estacionamento em Lisboa são caros - mas o objectivo é que as pessoas parem menos os carros.
O parqueamento tarifado em períodos de 15 minutos fez disparar os preços. Por que o permitiram as autarquias?
O Governo executou mal uma boa ideia, por falta de negociação. As autarquias têm contratos com os concessionários. Todas as subidas de preços que eu autorizei estavam abaixo dos máximos previstos nesses contratos, pelo que não tinha margem para dizer que não. Apesar de tudo, em Lisboa os preços não subiram tanto como noutros pontos do país.
Quanto recebe anualmente a EMEL por conta das multas que passa aos automobilistas?
Apesar das enormes despesas que temos com fiscalização, em 2006 tivemos 20 mil euros de receitas para um total de 30 mil autos levantados.
Como é possível? A Direcção-Geral dos Transportes Terrestres não entrega as receitas à câmara?
Prefiro não falar nisso. Estou a tentar encontrar uma solução para o problema com o Governo.

É impensável fechar a zona ribeirinha ao trânsito


"A Avenida 24 de Julho e a Infante D. Henrique têm demasiadas vias
de rodagem"

Não é necessário introduzir portagens no acesso ao centro da cidade, defende a vereadora da Mobilidade na Câmara de Lisboa
Defende portagens para aceder ao centro da cidade?
Não. Esta solução surgiu em Londres quando já estavam esgotados todos os outros mecanismos de controle do tráfego e os engarrafamentos eram brutais. E o seu objectivo foi essencialmente financeiro: fazer um grande investimento na frota de autocarros. Em Lisboa, ao contrário de Londres e de outras cidades europeias, temos muito mais estacionamento à superfície que em garagem. Para melhorarmos o estacionamento temos é que tirar carros da rua, fiscalizando melhor as segundas filas e os passeios e construindo parques para residentes. Gosto muito de dar uma volta pela cidade - de carro ou a pé - depois da meia-noite e verifico que há imensos bairros onde o estacionamento à noite é pior do que durante o dia. É o caso de Alcântara, Belém, Benfica e Campo de Ourique, por exemplo. Os passeios estão cheios de carros. No Príncipe Real chega a haver duas e três filas de carros. Resolver isto é fundamental para a recuperação urbana da cidade.
O túnel do Marquês vai contribuir para melhorar o trânsito em Lisboa?
Vai. A deslocalização do centro de Lisboa da Baixa para o Saldanha, em termos de serviços, provocou um enorme agravamento do trânsito no Marquês. O único problema que o túnel tem é ser objecto de uma campanha política brutal. A auto-estrada de Cascais congestiona muito Lisboa e o túnel vai permitir reorientar esse tráfego.
E os túneis previstos para a futura Circular das Colinas?
Não conheço bem a Circular das Colinas. O problema da mobilidade em Lisboa não pode ser visto a partir do Terreiro do Paço - nem da Baixa, nem de Benfica, nem de Alfama, por exemplo. Tem de ser visto como um todo, integrando as infra-estruturas e os diferentes modos de transporte. Andar a pé é um modo de transporte, e hoje em dia anda-se muito pouco. As pessoas apanham um transporte público ou entram no automóvel para fazer um quilómetro. Não tem sentido.
Mas a Circular das Colinas é uma espinha dorsal do projecto de revitalização da Baixa-Chiado...
Não acho. Na Baixa há três eixos que é preciso descomprimir: a Rua do Alecrim/Misericórdia, a Rua do Ouro/Prata e a zona ribeirinha. Agora é impensável fechar a zona ribeirinha ao trânsito, desviando o tráfego para as ruas da Conceição, de S. Julião e do Arsenal. Podemos pensar numa avenida ribeirinha. Mas com carros, porque uma avenida não é pedonal.
Como assim?
Mantendo duas vias para cada lado na zona da Ribeira das Naus, com um bom passeio no meio e um bom passeio de cada lado. Para ser vivido o rio não pode ter só vias paralelas, também tem de ter vias perpendiculares que vão lá ter. É importante haver automóveis para que os locais sejam habitados. É o que acontece na Castellana [Madrid], no Passeo de Gracia [Barcelona], nos Campos Elísios [Paris]. Vamos fechar a Baixa aos carros, transformando-a num Bosque de Bolonha? Não. A Avenida 24 de Julho e a Infante D. Henrique é que estão erradas, têm demasiadas vias de rodagem
"

Sem comentários: